Lara: uma garota de programa em São Paulo
Meu nome é Lara.
Ou, pelo menos, é assim que eles me chamam.
Aprendi cedo que os nomes são máscaras — e que algumas máscaras, quando usadas por tempo demais, acabam moldando o rosto por baixo. Lara foi um nome inventado, escolhido certa noite em um bar da Rua Augusta, quando alguém me perguntou quem eu era e eu não soube responder. Hoje, ele soa tão natural quanto o som da chuva caindo sobre as janelas do meu apartamento em Higienópolis.
São Paulo me ensinou a ser muitas mulheres: a que ri, a que ouve, a que veste o vestido certo e o perfume que deixa rastros.
Mas, acima de tudo, me ensinou a ser silêncio.
Naquela noite, eu não esperava nada diferente.
Um cliente novo, indicação discreta, hotel cinco estrelas perto da Avenida Paulista. As instruções vinham em poucas palavras — “homem reservado, gosta de discrição, jantar no quarto, depois conversam”.
Eu sabia o roteiro de cor.
Cheguei cedo.
O elevador espelhado refletia mais do que meu rosto: mostrava a mulher que eu havia aprendido a ser.
Cabelos soltos, batom cor de vinho, vestido de tecido leve — nada gritante, apenas o suficiente para acender o olhar certo em quem soubesse ver.
O corredor cheirava a carpete novo e solidão.
Quando ele abriu a porta, percebi que aquela noite não seria igual às outras.
Era um homem em torno dos quarenta e poucos, terno ainda no corpo, mas com o nó da gravata já desfeito.
Os olhos — ah, os olhos. Têm sempre algo a dizer antes das palavras. Os dele diziam “estou cansado”, mas havia algo mais, uma sombra de curiosidade, como se me reconhecesse de algum sonho antigo.
— Lara? — perguntou.
Assenti.
— Pode entrar.
O quarto era amplo, discreto, com vista para o coração da cidade. Lá embaixo, o trânsito seguia sua coreografia interminável de faróis vermelhos e buzinas contidas. O som distante parecia o ritmo natural da noite paulistana.
Ele me ofereceu vinho.
Aceitei.
Não falamos de valores, de tempo, nem de intenções.
Falamos de livros.
Era raro.
Homens que me perguntavam sobre literatura, sobre o que eu lia quando estava sozinha.
Respondi com calma, observando o modo como ele me olhava — não como quem quer possuir, mas como quem tenta entender.
E foi ali que começou o jogo invisível.
Há encontros em que o desejo não nasce do toque, mas do intervalo entre uma palavra e outra.
Entre nós, o ar parecia se mover devagar, como se o tempo tivesse decidido nos observar.
O vinho deixou o mundo mais lento.
Ele falava pouco, mas cada gesto carregava um cuidado quase terno — como se tivesse medo de quebrar algo que nem sabia nomear.
Quando tocou minha mão, não houve pressa.
O toque foi simples, como quem testa a temperatura da água antes de mergulhar.
E ainda assim, senti algo acender — não no corpo, mas num lugar mais profundo, onde o desejo e a lembrança se confundem.
Conversamos por horas.
Sobre a solidão dos apartamentos, sobre o som das sirenes que atravessam a madrugada, sobre o medo de envelhecer sem ser realmente visto.
E eu, pela primeira vez em muito tempo, me senti nua sem tirar a roupa.
Ele não queria a Lara que os outros compravam.
Queria a mulher por trás da voz, a que também se cansava de ser personagem.
Quando me aproximei, não havia roteiro.
Só respiração.
O mundo lá fora parecia ter desaparecido — os ruídos, as luzes, a pressa.
O que restava era o espaço entre nós, cheio de promessas silenciosas.
Deitei ao lado dele, e o quarto se encheu de algo que não era apenas desejo, mas uma ternura rara, quase perigosa.
Não posso contar o que aconteceu depois — não por pudor, mas porque certas coisas pertencem ao território do indizível.
O que se sente não cabe em palavras sem que perca a pele.
O amanhecer chegou sem pedir licença.
A luz atravessava as cortinas como uma verdade que se recusa a ser adiada.
Ele dormia.
E eu, pela primeira vez, quis ficar.
Mas sabia que não podia.
Há fronteiras que as mulheres como eu aprendem a respeitar: a da fantasia e a da vida real.
Cruzar essa linha é perder o equilíbrio — e eu vivia de parecer inteira.
Deixei o quarto devagar.
Na mesa, um bilhete: “Obrigado por não fingir.”
Guardei-o comigo, dobrado entre as páginas do livro que eu carregava na bolsa.
Nunca mais o vi.
Mas às vezes, quando caminho pela Paulista ao entardecer, sinto aquele mesmo perfume de vinho e solidão, e me pergunto se ele ainda pensa em mim — ou se fui apenas um fragmento de sonho em uma noite cansada de São Paulo.
Porque é isso que somos, nós, as LARAS espalhadas por essa cidade:
sombras que dançam entre o desejo e o esquecimento,
mulheres que conhecem os segredos que os outros fingem não ter,
e que sabem — com a precisão de quem já se perdeu —
que há encontros que não terminam quando acaba a noite.

